segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Passagem de Ano


Talvez. Porque são sempre certezas, até deixarem de ser. Até lhe ferverem cáusticas e pútridas no corpo, as certezas, que tinha, que o deixaram de ser. Talvez. Talvez tentando mais uma vez, outra vez, porque nas vezes anteriores mais que arte e destreza, faltou-lhe fé, em si, que esbanjou ao desbarato, em outros, que a sugaram de forma canibal e o arrastaram para o canto do bar. Sozinho.

Finalmente, chegou. Carnal, cruel, que o fez engolir em seco todos os planos que gatafunhara mentalmente ao namorar com a imperial meia morta. Nem o viu, cercada por cem outros tão mais rápidos que ele. Sem interesse, os cem, ficariam a gravitar, sem sentido, na trágica indiferença dela.

Se o visse, nada mudaria. Porventura, um aceno indolente. Tão pálido, hipnotizante e azul como aquele que conduz mosquinhas deambulantes, ingénuas, para uma morte eléctrica, à frente de todos, ignorada.

Doentio, o que ansiava esse olhar, que lhe desse uma razão. Uma desculpa para se libertar de si, aspirado para ela, para o seu sorriso, para o seu regaço.

Estava quase tão bêbado como tantos outros que ali se costumam deixar morrer pouco a pouco. Foi até ela. Transpirado e ofegante cruzou todo aquele antro, que ele só não odiava mais pela possibilidade de a encontrar, chegou, olhou-a, ignorando todas as restantes que se riam com ela.

- Olá.

- Olá.

- Nunca te tinha visto aqui. Posso-te convidar para beber qualquer coisa?

- Não.

Não fossem as colunas de som debitarem milhares de decibeis de surdez, vibrando, ondulantes, pelas carnes, ouvir-se-ia o silêncio dele, enquanto gritava mudo de vergonha. Para que tentara outra vez? Porque o ano mudara? Apercebeu-se, não interessa ter sido antes da meia-noite. A passagem de ano são os últimos dez segundos do calendário. O essencial, o concreto, a luta do dia-a-dia, mantém-se. A vida não recomeça, continua amanhã depois da ressaca.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Amanhã, o que ficará para trás?


- “Merda. Esqueci-me das bolachas. Mas agora estou no meio da fila. Mas agora também não vou sair daqui, para voltar lá para fundo-mesmo-ao-pé-das-batatas-fritas.  Merda. Quem me mandou vir a esta hora? Esqueci-me das bolachas, que raio vou comer de manhã, à pressa, atrasado para as aulas, a correr para as aulas, atrasado. Sempre, invariavelmente, a correr para aqui, ou para ali, ou para aulas. Merda, preciso das bolachas.”

Talvez se não estivesse mesmo à minha frente, nem repararia. Entretido a lamentar-me da minha memória de sempre, da falta dela, enquanto ele estava ali. E é parecido comigo, o pequeno, quando eu era pequeno. Anafado. Com bochechas cor-de-rosa fiambre. De certeza que quer ser cientista. De certeza que vai à baliza nos jogos de bola, mesmo não querendo. De certeza que gosta de banana com bolacha, de banana, com demasiada bolacha. De certeza que queria um daqueles pacotes de M&Ms amarelos que se exibe pornograficamente ao pé da máquina registadora, para compensar umas quaisquer duas horas de frases coordenadas e subordinadas, monocórdicas aulas de português.

Estava ao pé da mãe. Que ao contrário de mim se tinha lembrado, para além da carne, do arroz e da fruta, de levar uma caixa com uma meia dúzia de uns quaisquer pedaços de mau caminho de manteiga. Com chocolate.

Nada o fazia esperar. Foi uma agressividade. Um nojo. Execrável, sem piedade. Sem alma. A mãe, envergonhada, não tinha dinheiro para a caixita de bolos. “Pode ir levantar dinheiro ali atrás, ao pé dos cacifos”, “Pois… não vou poder, ficam as roscas”. Foi automático. Instantaneamente, os olhos encheram-se quase até ao máximo, prontos a rebentar, mesmo no limite do suportável, ao mesmo tempo que se agarrou a ela e num aperto de mão mudo, quase tão calado como o choro que não existiu, quase tão silencioso como a vergonha da mãe, foram embora os dois. Desta vez, ficou a sobremesa. Amanhã, o que ficará para trás?



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Amigos do Facebook


Entre as luzes que se estalam na cara e o cegam durante demasiado tempo, ele viu-a. Mesmo de olhos fechados. Mesmo a lacrimejar compulsivamente. Desmesuradamente. Porque a mesma mortalha, ponta de cigarro, que mutila em brasa a carne incauta, seguindo-se o tal: “Desculpa, estás bem? Ah? Não ouvi. ESTÁS BEM? Sim, sim…claro.”, escarra um fumo odioso que empala os olhos bem até ao nervo. Por sorte, o mesmo povo que defeca alto fumaça, disfarça-a com o melhor perfume. Tocante a preocupação. Tocante o cheiro.

Aventurou-se até ela. Entre cotovelos, fios de cerveja que teimam fazer-se escorrer até ao mais íntimo de si, gelando o que não era suposto, e abanões, e matulões-que-não-dão-um-passo-porque-isso-é-uma-afronta-à-sua-virilidade. Não era digna de tamanha provação. Não era tão interessante como na Foto de Perfil. Talvez nem valesse a pena. Talvez noutra perspectiva. Talvez fosse da luz. Talvez porque a maquilhagem desistira após horas agarrada a marcas de unhadas e concentrados de pús. Talvez, principalmente, porque o decote ao vivo era menor.

Balbuciaram nada. Gritaram à surdez imposta pelas colunas de som. Até ela ir embora. Até ele ouvir: “Encontra-me no Face”. Encontrou. Agora são amigos. Oficialmente. Ele os restantes quatrocentos que viram o mesmo decote. Durante meses, religiosamente, gostou de cada música, comentou cada foto com agilidade e arte camonianas, “Devias ser modelo. Linda!”, desejou que ela reparasse nos “Gostos” estratégicos nas páginas da Katy Perry, numa qualquer loja de cupcakes cor-de-rosa e no Alfaiate Lisboeta.
 
Meses agarrado ao computador. Para nada. Nem se dignou a um aceno. Uma agnição da sua existência. Não o reconheceu, quando passou. Para ela, ele é apenas o tipo com a foto do Carrera amarelo. Não se conhecem. Não se falam. Mas ele sabe que ela vai ao concerto em Novembro. E sabe com quem. Enquanto ela passa distraída, ele vai sabendo de tudo.




Imagem retirada de http://www.johnhaydon.com/2009/04/facebook-groups-pages-tips/. Acedido em 22/11/2012.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Sr. Freitas teve um enfarte.


Aqui a atrasado, foi por tosse. E foi por febre. Prostração e dor no peito durante a semana anterior. Foi por doença grave e pelo mimo característico de um primogénito beirão, herdeiro de nome sem graveto, habituado a mamãs e vovós, e “coitadinho do meu menino” e “espera que já vamos ao doutor”. Por vezes, uma expectoração verde-ranho dava um ar da sua graça, pavoneando-se, toda séptica, brônquio acima, brônquio abaixo. Tinha tudo e mais o que se inventasse e fui às urgências.

Não demorou muito até ser auscultado e picado e radiografado e “é só mais um segundinho” e “desculpe, tenho mesmo de atender esta chamada”, numa dança que demorou apenas o suficiente para dois dedos de conversa com o Sr. Freitas. Mesmo entre sondas, gazes e tubos percebi que nos encontrámos ali por “um apertão rijo no peito”. Agora estava bem, desde que a Enfermeira não lhe voltasse a tentar enfiar a sonda narina acima. Nunca vira ninguém tão piúrço com um tubo metido focinho adentro.

Na verdade, não prestei muita atenção à conversa de circunstância até que o antigo empreiteiro se saiu com um desabafo. Áspero. “Isto há vinte, vinte e cinco anos, vinha dinheiro de fora, construía-se, havia sempre emprego na construção. O dinheiro não era nosso, mas metia-se nos pavilhões das juntas, nas rotundas e nas casas do povo aqui e ali.” Acrescentou: “quando estávamos mais apertados era só meter uns homens num pavimento de auto-estrada e fazia-se o mês”.

O Sr. Freitas sabe bem que foi uma economia baseada no betão que nos conduziu aqui, hoje. Sabe bem que agora não há dinheiro para construir. Não há economia. Porque também não há indústria, nem agricultura, nem pesca. Ao menos, nem tudo são más notícias. Eu já não tenho tosse, o Sr. Freitas teve alta.




Imagem retirada de http://4olhosxd.blogspot.pt/2009/01/notcia-utilizao-dos-antibiticos-no.html. Acedido em 14/11/2012.

sábado, 3 de novembro de 2012

O Nalguedo da Gabriela


Não me lembro do dia, nem tal seria essencial, tão pouco de como chegou a conversa àquele ponto. Àquele tema. A estupefação foi tanta que as minhas maneirinhas potencialidades intelectuais permitiram-se reter uma única frase. Cinco palavras. Nem o locutor, tão pouco o local. “A Juliana Paes tem celulite”. Sabido que a discussão de pêlos, borbulhas, gordura e demais pregas afins com deficitárias cromossómicas Y é um lodaçal ingrato cujo resultado nunca é favorável para o género viril, incauto, apesar de avisado, caí no erro de me juntar à desinteligência sobre o glorioso traseiro da carioca.

                De forma geral falava-se da Gabriela. A novela. Onde a substituição de uma saloia distintíssima, Sónia Braga, por uma voluptuosa morena com cara de menina veio contribuir para renovar de súbito o interesse pelo trabalho de Jorge Amado, apesar de adaptado para acirrar o mais animalesco e suado dos sentidos.

Como, infelizmente, não sigo a patranha, dediquei-me a procurar a cena alvo de análise anatómica no Youtube. Uma missão profunda e exclusivamente antropológica. Método empírico, em que, finda a devida e seríssima análise, concluí a existência da tal gordurazinha localizada. Gordurazinha boa ou má? Estética ou um nojo? Para cortar ou exibir com orgulho?

Esse parece ser o principal problema da gordura, nos dias correm. Poucos se entendem sobre: a) a sua real existência ; b) a sua correcta localização; c) métodos para cortar a que está a mais; e principalmente; d) qual está a mais.

É a questão “d” que deverá suscitar mais dúvidas. Simplificando, banhinhas repugnantes, escandalizantes, como privatizações duvidosas, por exemplo, o caso BPN que conta já com nove mil milhões enterrados em processos incertos, ao que se acrescenta as centenas de assessores, a infinidade de institutos, organismos e fundações, com as respetivas benesses, as reformas milionárias dos altos serventes públicos, entre outras, são para abater. Outras, adiposidades estruturantes e necessárias para untar o tecido social, devem ser protegidas, acarinhadas. Prestações sociais, serviços públicos como transporte, educação e saúde, rendimentos mínimos, apoio às artes e investigação. É chicha fundamental, faz falta.

Há um problema. A forma mais difícil, demorada e eficaz de cortar a adiposidade seria uma lipoaspiração radical nos institutos, organismos e fundações. Particularmente os de alçada local. Efeito secundário? O despedimento de centenas de pessoas que o Governo, numa situação frágil como a actual, não poderia suportar. Leva antes 50% de tudo o que cada um produz, corta nas pensões e subsídios. Corta na gordura estrutural. Essencial. Porque é mais fácil. Rápido. A verdadeira celulite, essa, fica cá toda.








Imagem retirada de http://blogdewilliamporto.zip.net/arch2012-06-01_2012-06-30.html. Acedido em 03/11/2012.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Não Acreditação do M.I.M. da U.A.




Existem escolas médicas a mais? Existem, segundo normas internacionais  deve haver uma faculdade de medicina por cada dois milhões de habitantes. Existem nove, em Portugal. Para não se arruinar o investimento já feito, aumente-se o número de vagas em Faro e em Aveiro, fazendo uma racionalização (diminuindo o total) do numerus clausus, de forma a resolver o problema de sobrelotação, quase claustrofóbica, das restantes faculdades do país, aumentando a qualidade do ensino básico e garantindo a continuidade da formação médica. Simplicidade. Que não passa por abrir mais faculdades de medicina. Privadas ou não. 


O tema não é novo. Aliás, a incapacidade da elite portuguesa – lisboeta? – fazer uma gestão adequada dos recursos públicos, roçando já o patológico, o cancerígeno, é um habitué que adocica sarcasticamente os dias mais sombrios de inverno na Pastelaria Vénus ao virar, mecanicamente, as páginas do periódico salpicadas de leite.

“Ai, ai, lá estás tu a ser do contra”, exaltam os guardiões do optimismo, boa-disposição e demais póneis envoltos em arco-íris, enquanto me dedico a abrir a página da U.A., onde se informa sobre “a não abertura de vagas para o próximo ano 2012/2013”. O porquê espraia-se no site da A3ES, que rejeitou a acreditação do MIM da U.A. “Então, não era isso que tu querias, a racionalização do número total de escolas médicas?”, vociferam os espertinhos que gostam de manter um odioso histórico de conversas. Não, não era. Em particular quando a Comissão de Avaliação Externa, segundo um comunicado da ANEM, recomenda a descontinuação do curso em Julho de 2012. Uma vergonha.

Não é comentável a leviandade política que permite, contra a opinião de quadros de especialistas reunidos (e pagos) para o efeito, com o parecer desfavorável (repetido variadíssimas vezes) da Ordem dos Médicos, com o alerta desesperado da ANEM, com total desinteresse pela qualidade da formação médica básica e programas de especialidade, a abertura de um curso para cumprir o mais reles dos objectivos. O populismo fácil.

Não é comentável, não é compreensível o desprezo com o futuro de jovens brilhantes, 38 de um conjunto de 1000 candidatos. Licenciados. Melhor sorte tiveram os restantes 962.















quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Somos Pantufeiros.




Sabe demasiado bem. O ar é doce e terno. E cheira a bolo, o nosso bolo, aquele que nos acaricia ao chegar a casa, quando o corpo dói do frio áspero que tomou a rua como sua, mas que fica sempre à porta. Mas que fica sempre à espreita, lá fora, enquanto nos perdemos no regaço do sofá, naquele cantinho mais doce do mundo onde o leitinho é sempre mais morno e que transforma qualquer minuto vespertino no mais encantador soninho. É onde a almofada tem uma mancha de baba. É nosso. E é mais que isso. É a mãe a chamar para jantar porque há natas do céu ou as tardes passadas em casa da avó, a comer marmelada com bolachas, e bolachas, e marmelada. E é o natal, e o aperto no coração até à meia-noite, que não chega nunca, para ver os olhos do mais cachopo, e há papel por todo lado e sempre, sempre, mais um bolo-rei, mais um bolo. Sempre, mais uma aletria.

Somos caseirinhos, quentes, emotivos e, principalmente, pouco produtivos. Gostamos de robes e chinelos, que mantemos ao ir comprar pão ao Sr. Azevedo. Gostamos do pão do Sr. Azevedo e de saber se a Anita vai casar em Junho. Somos um país que não cabe em relatórios de contas porque os bigodes do avô não se moldam às células de um programa de somatório. Somos descontraídos. O que não ajuda no momento de pagar as contas. Absolutamente nada. Por isso estamos na miséria. Porque adoramos pantufas e ver a miudagem a jogar futebol ao pé da garagem. A norte dos Pirinéus não entendem, com os gráficos, tabelas e guias. Está tudo pago. Tudo a horas. E ainda bem. Vivem com contas tratadas, vivem e viverão bem. Mas são demasiado monótonos. Frios. Nós vamos sobrevivendo em família, com a família, com o cão, com o gato, o nosso e o da vizinha, com os amigos com quem, enquanto se espera pelo cabrito nos rimos mais um pouco da desgraça que é amar demasiado esta terra.

Que não venham em nome das metas do défice, seja lá o que isso for, exigir demasiado, sempre dos mesmos. Quando não houver dinheiro para ver o Benfica perder mais um campeonato com um pratinho de tremoços o caso muda de figura. Não se habituem a manifestações pacíficas. 






Imagem retirada de http://catedraldaluz.blogs.sapo.pt/5364.html. Acedido a 17/10/2012.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O CNECV não vende jornais


Imagino directores de jornais nacionais a espumar da boca, quais adolescentes solitários com o último catálogo da Intimissimi nas suas trementes mãozinhas suadas, quando um qualquer lacaio de trinta anitos, a fazer umas horinhas a recibo verde há sete, lhe vem informar que os tipos do CNECV – um órgão meramente consultivo - emitiram um parecer que de forma sumária e em linhas gerais diz qualquer coisa passível de ser interpretada como um contributo para a legitimização do corte ao acesso a medicamentos.

Nunca mais se encontrava um título com força suficiente para encaixar entre as notícias sangrentas do massacre dos poucos que ainda vivem do trabalho por um governo a que Portas e os outros fixes fingem não pertencer e a capacidade mobilizadora do Facebook que reformou os autocarros bafientos da CGTP. Ou era isto ou lá se tinha que ir buscar mais umas escutazinhas do Sócrates. Ou o facto de o Oceano ser o novo Chalana do Sporting.

Apesar da virginal indignação histérica de uma turba incrédula com a possibilidade de se “tirar certo tipo de medicamentos a certo tipo de doentes”,o documento começa por definir quais os medicamentos e quais os doentes a que se refere com o seguinte parágrafo:

“O pedido formulado por Sua Excelência o Ministro da Saúde diz respeito à  elaboração de um Parecer sobre a fundamentação ética  para o financiamento de três grupos de fármacos, a saber retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos em doentes com artrite reumatoide.”

De forma simples, os tratamentos anteriores são caríssimos mas essenciais para os doentes e para um estado carente de força produtiva, devendo-se optar por fármacos com um custo-efectividade elevado, “os mais baratos dos melhores”, oferecendo-se o melhor tratamento possível ao maior número de doentes, havendo um “fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde promova medidas para conter custos com medicamentos”, antes que que se materialize a sua antecipada falência.

Posto desta forma ninguém discorda. Assim faz sentido, racionalizar não é o mesmo que racionar e o que se pretende é uma justa e equilibrada distribuição de recursos. Mas desta maneira não faz notícia. Assim não vende.



quarta-feira, 26 de setembro de 2012

À Procura de Diana


Foi um deslumbre do que seria. Foi por aquele misto inconsequente de aborrecimento e sadismo. Fez de propósito. Por aquele sorriso que o sangrou, incauto, bem fundo na carne. Foi num instante. Tão rápido que lhe definhou toda certeza de si e deixou-lhe a vontade dela. Agora, nem o ar se deixa respirar, nem o Sol aquece. Nem ele encontra a Diana.

Vai tropeçando, aparvalhado, atrás de nada. Ela não lhe disse que estaria lá. Nem que iria ser dele. Mas vai escrevendo, enquanto grita, porque ele já lhe pertence. Enquanto se humilha nas redes sociais. Enquanto vai estampando páginas de jornal. Enquanto eleva o nome dela o mais alto que pode. Enquanto ela não vem. Nunca virá. Como uma sombra. Por mais que corra, estará sempre a um passo mais de distância. Ali ao pé, desesperadamente longe.


Ele corre, como eu corro. Como nós saímos de casa. Como muitos outros berram com fachas e punhos na rua. Por esperança. Nele cabe um país inteiro que, por comparação, não sabia que estava mal até ela – a Europa, não a Diana – lhe cuspir que estava. Agora sacrifica-se por ela. Sacrifica-se tudo. Para ele valerá a pena, mesmo dilacerado, mesmo sem a Diana, haverá sempre raparigas que entre as últimas noites de Verão fogem na multidão do Bairro Alto. E para nós, valerá a pena?







Imagem retirada da Comunidade À Procura de Diana. Localizada em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=420691831327246&set=a.417228515006911.101089.417224098340686&type=3&theater. Acedido a 26/09/2012.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A Grande Fábrica de Salsichas, in aNEMia



Mais uma vez sobre o mesmo. O de sempre. Numa revista com muito mais para oferecer do que salsichas, pode-se encontrar, na página 10, mais um Golpe. Está em todo o lado. 








Mais do mesmo pode ser visto no lugar do costume. A qualquer hora.




quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A Minha Geração


Findo o caldo, saí de casa, noite quente, um quarto para as nove. Talvez menos, porque o Rodrigues dos Santos ainda aproveitava os últimos minutos de antena da televisão pública. De uma televisão pública. Na última quinta, era no Fiel. Eramos só quatro. E era estranho.

Todos se conheceriam há demasiado tempo, pesando os vinte e poucos anos que ainda se aligeiram nas pernas, não fosse não reconhecer ninguém. Já lá não estão a Xica, nem o Rafa, nem o Toino, tão pouco o outro anafado. As conversas mudaram. Já não incomoda as vinte páginas sobre a Civilização Romana ou as odiosas linhas de uma perspectiva pouco cavaleira que jamais se cruzaram no mesmo ponto. Não interessa se o Lemos come os cordões do capuz ou, mais que tudo, se o Girão trouxe a bola.

O tom de voz é cinzento e sádico enquanto acerta mecanicamente na carne da alma. Até rasgar a pele. Até meter dó. Só já em sangue se permite a última estucada, “Então, e agora?”. É um timbre odioso, putrefacto.

Nessa quinta, foi no Fiel. Fomos só quatro. E foi estranho. Aquela sonância lúgubre escarrou à evidência mais do que me dispunha a ver. Uma geração com quinze ou mais anos de vida hipotecados num papel de comprovativo assinado pelo Reitor. Doutores de nada, uma troca injusta. Não pertencendo a uma geração rasca, com tantos anos de livro, também não partilho de uma geração à rasca. Essa é a dos nossos pais, que vão tentando com o que podem, enquanto podem. Somos uma geração desperdiçada. Não concretizada. Uma geração por ser, porque nunca será nada.






Imagem recolhida de http://designspiration.net/image/2059543330439/. Acedido em 13/09/2012.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Ele é Manco da Cabeça


Ele é atrasadinho. Coitado. É esforçado, bom rapaz e asseado e até vai à missa com a avó, aos domingos, sempre de manhã, que o menino fica nervoso se não come ao meio dia e meia hora, um quarto para a uma. É lerdinho. Cuide-o Deus, que não vai dar Senhor. Tão pouco Doutor Engenheiro. Ai, Nossa Senhora, que este não tem cabecinha que se molde nas ripas rijas de um banco de uma qualquer faculdade. Uma faculdade qualquer, desde que regurgite mais uma ripa, rija, com diploma.

É manquinho da cabeça, meu filhinho. E não foi o Senhor Doutor que disse. Esse também é só congressos, disse a moça do balcão. Nunca está. Sempre para a semana ou no mês seguinte. Ou lá para Novembro que a “tensãozita está óptima”. Da EB 2,3 de Póvoa da Moita, a funcionária que fala com os tolinhos – a psicóloga? - é que enviou uma carta para casa. Já é a segunda vez que chumba de ano e ainda nem fez o oitavo. Caso perdido. Irremediável. Vai para talhante. Electricista, se calhar, que o moço é atreito para os computadores.

A Pátria dá o exemplo a seguir. Do bom aluno. Sempre na primeira fila, sempre atento, sempre pronto a acudir a qualquer requisito mais ou menos sombrio estipulado pelo lente germânico. Ou outro qualquer, que as cadeiras são muitas. O importante é mantermos o rumo ao sucesso trilhado nos últimos meses. Educativo e não só. Nem que para tal se deixe alguém para trás.






quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Da Digestão Nojenta à CESPU.



De entre as muitas memórias de infância que vibram de um passado gordinho pouco atreito a jogos de bola, Digestão Nojenta, um livro que em cento e poucas páginas de letra garrafal faz mais pela compreensão das vísceras, entranhas e dejecções que grande parte dos tratados de gastroenterologia, é uma das mais marcantes. É pornograficamente explícito. Descomplicado.


Das horas escanzeladas de leitura a que se permite, o livro oferece explicações variadas sobre motivos diversos do âmbito digestivo, desde um “dossier sobre germes mortíferos”, relacionado com diarreias diversas, gastroenterites, possivelmente, passando por apendicites, amigdalites e outras ites fascinantes para um garoto que o que queria mesmo era ser médico. Médico a sério. Com poder de passear de bata, magicamente indiferente ao movimento do corpo, como se o pano estivesse amestrado, e dominar a sublime e delicada mágica, restrita a alguns seleccionados, de empoleirar o estetoscópio nos ombros, inabalável, sempre pronto para acudir a qualquer batimento menos audível. E passar receitas, obviamente, com uma letra de escrita sonora, conhecedora, papel timbrado, tinta preta, imperceptível se não na farmácia.


O que se aprende neste livro é simplicidade. Devia ser de leitura obrigatória. Existem escolas médicas a mais? Existem, segundo normas internacionais  deve haver uma faculdade de medicina por cada dois milhões de habitantes. Existem nove, em Portugal. Para não se arruinar o investimento já feito, aumente-se o número de vagas em Faro e em Aveiro, fazendo uma racionalização (diminuindo o total) dos numerus clausus, de forma a resolver o problema de sobrelotação, quase claustrofóbica, das restantes faculdades do país, aumentando a qualidade do ensino básico e garantindo a continuidade da formação médica. Simplicidade. Que não passa por abrir mais faculdades de medicina. Privadas ou não.


Ninguém põe em causa a qualidade da formação da CESPU. E até há uma “coincidência muito grande do plano curricular” do curso de Ciências Biomédicas com “os primeiros anos de qualquer curso de medicina”. Só há um problema. Praticamente igual não é a mesma coisa que igual. Bom não é igual a óptimo. Pode até existir uma “coincidência muito grande”, mas óptimo nunca será igual a excelente. E excelência é o que se espera de futuros profissionais médicos.





quinta-feira, 12 de julho de 2012

A Greve dos Médicos foi uma Vergonha.


      Vi-os a desfilar pela televisão. Estavam de bata. E cartazes. E estetoscópios. Um escândalo, um desrespeito por quem ainda confia nesta gente. Alguns nem médicos eram, meias-lecas de gente a aquecer bancos nas faculdades, e também estavam na rua aos berros, preocupadinhos já, os meninos, por poder não sobrar nada para eles também. Pensava eu, estávamos num país falido. Intervencionado. Onde meio mundo está a perder dinheiro e outro meio já o perdeu. Onde falta para pagar ao funcionalismo público, onde milhares, os economistas por obrigação, fazem contas para chegar ao fim do mês, onde milhares já estão no desemprego, onde milhares não têm como sustentar os catraios, quanto mais pagar consultas, onde milhares não sabem o que fazer da vida. Onde milhares estão desesperados. Onde milhares ainda sabem que podem contar com o SNS. Ainda que moribundo, a dar as últimas. O garante mínimo de saúde a todos. Onde aqueles aperaltados têm o desplante de sair à rua lutar por privilégios adquiridos ao longo de anos. Adquiridos e pagos com o esforço de todos, para todos.

- Desculpem, mas é preciso cortar.

A saúde, como a comida no prato e a educação dos filhos, tornou-se um privilégio do tempo das vacas gordas. Não é para todos. É para quem paga, ao que parece. Daí, a greve dos médicos ser uma vergonha. Teve que sair à rua toda uma classe profissional, gritar aos pés do Ministério da Saúde, para lembrar a quem de direito que, para cortar, que se corte onde está a mais. Nunca na saúde das famílias. Nunca numa altura em que, mais que nunca, é preciso dar garante a quem menos tem. E tem cada vez menos. Nunca confundindo direitos básicos com privilégios. Nunca num estado de direito. 


segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ronaldo, desculpa. Do fundo do coração.


Não gostar de ver futebol em Portugal é duro, ainda mais durante o Campeonato da Europa. Num país em que as próprias fronteiras traçam um campo da bola gigante, as consequências para quem não consegue apreciar um bom box to box de um gandulo em calções são várias, incisivas e duradouras. A reprovação social traduz-se, desde logo, em questões relacionadas com a orientação sexual. Em acordo comunitário está a estipulação imediata que o “gajo é paneleiro”. Dependendo dos regionalismos, “rabeta”, “maricas” ou “panisgas”, “panisguinhas” na sua forma quase paternal, são também aceitáveis. É certo e sabido, só há dois tipos de pessoas: as que gostam de ver uma peladinha milionária de indivíduos elevados, nem que seja por umas semanas, ao estatuto de verdadeiras Padeiras de Aljubarrota, com o escadeado irrepreensível e as pontinhas meticulosamente aparadas, para o cumprimento do desígnio nacional, e “os que pegam de empurrão”. Ou doutra forma qualquer. Como os que se amontoavam ontem à porta do Estádio Cidade de Coimbra.

Quem não acompanha as vinte e poucas horas de antevisão de cada jogo, num verdadeiro turbilhão mediático de análises, previsões e comentários, muitas vezes sobre outros comentários, previsões ou análises – em algumas circunstâncias são apenas conjecturas fundamentadas no desempenho em partidas desde tempos imemoriais, outras, simplesmente, baseadas no facto do Ronaldo “ser mesmo muita bom” - ganha tempo para se deparar com dois pesos e duas medidas. Uma injustiça.

Enquanto que ao puto maravilha, começado nas lides desportivas pelo Clube Futebol Andorinha de Stº António, se exige, muito mais que esforço ou competência, excelência em cada toque de bola, para instituições como a Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERCS) a integridade nem sequer é pré-requisito. Depois de consideradas reprováveis as pressões e ameaças do Relvas, confirmadas por múltiplos testemunhos, a ERCS considera não haver provas irrefutáveis, indesmentíveis, inabaláveis de tal acto e, como tal, escusa-se a divulgar uma decisão final, punitiva. A sorte é que até se pode deixar passar incólume tamanha incompetência, afinal, nem sequer está em jogo o título europeu de futebol.




Aqui, está o outro texto sobre o mesmo assunto.






Imagem retirada de http://www.zerozero.pt/foto.php?id=18724. Acedido a 25/06/2012.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

As Senhoras do Horta


Fina flor não pede uma jarra de vinho branco para empurrar da goelinha civilizada uma empada de lombo de porco. Pede um cházinho frio, de bule sem gola, ao empregado  – “sempre tão prestável, um amor de pessoa” – que às cinco horas a barriguita já pede um peso que as bolachinhas recheadas não dão. Ficam para a Bianquinha degustar enquanto observa os catraios na praça, para não estragar o apetite para a ceia.

O estabelecimento que, em Viseu e somente para senhoras, era conhecido por encher os serviços de porcelana de pomada do Dão, era o Horta que, ao fim de 140 anos a dar “quebras de tensão” às madames da Beira Interior, fechou. Como os outros. Mesmo os menos finos. Os que não usavam eufemismos. Uma raridade numa altura em que figuras de estilo para suavizar a realidade são uma constante.

Ao fim de meses a repetir o mesmo – a solução para a crise do Euro está em medidas graves de austeridade, que o novo tratado veio devolver a confiança aos mercados e que a culpa da crise é dos países periféricos, uns lambões – aconteceu o que não era suposto. A quarta economia europeia precisa de cem mil milhões de euros para recapitalizar a banca. A fornecer, claro está, que mais vale uma criança com fome que um banco falido. Mas com várias condições! A primeira é que não se pode chamar resgate! Era uma humilhação para um país de bem.

Claramente esta gente das europas e dos bancos nunca foi ao Horta lanchar. Agora também vão tarde para aprender que, quer seja da bebedeira ou do sol forte do Verão, da pipa ou da flute de cristal, no dia seguinte, a ressaca é a mesma. Para todos.

Imagem recolhida de http://guedelhudos.blogspot.pt/2010/01/pastelaria-horta-viseu.html. Acedido em 11/06/2012.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Grande Porco




Podia, mas não. Não o ouvi da minha avó. Ouvi outras frases, mas não esta. Não que a Senhora não tenha sapiência para tal erudição, simplesmente é uma verdade incómoda. Desde sempre. Ainda o macaco estava a deixar de o ser e o primeiro homem começava a juntar javalis em cercas e já se sabia:


- “A melhor espiga é para o pior porco.”


É imperativo engordar o porco, a qualquer custo. Um mau suíno é aquele que não cumpre o seu desígnio. Encher o bandulho à larga, constituindo bem as carnes, para depois ser comido. Ponto final. Nasce bacorinho, fofinho, rosinha e meio parvo, finda chouriço, feijoada, costeleta ou aquilo que a patroa quiser fazer antes da novela. 

Se o bicho não cresce direito, só há uma solução: abrir os cordões à bolsa e deixar o farelo de lado. Sai caro. E já não é de agora. Grunhos com manias de senhor já por aí andam há imenso tempo. E quanto mais se adia a matança, mais o pessoal se afeiçoa ao bicho, mesmo com caprichos. E vai-se envolvendo na lama, entretido. E vai comendo.


Quando o porco deixa de ser leitãozinho e passa a ser um macróbio incontinente com cheiro a ranço velho é que o caseiro se lembra que não o matou. Normalmente, já vai tarde. Exemplo? Na Madeira só agora se aperceberam daquilo que já há muito se sabia. Nova auditoria do Tribunal de Contas, mais facturas de muitos milhões em atraso.


 Agora é que querem apresentar moções de censura? Agora é que querem a matança? Agora vão tarde. Que o afastem. Que o esqueçam. Mas que partilhem a culpa do estado em que estão. Mais culpado que o porco que fez o que sabia é quem o deixou chafurdar uma vida.



Imagem retirada de http://www.opresenterural.com.br/caderno.php?c=5&m=29. Acedido em 28/05/2012.                                         

segunda-feira, 21 de maio de 2012

A Galinha Sem Cabeça.


Era uma vez. Dessa vez a sogra ia lá jantar a casa e, como de outras vezes, o que ela queria mesmo era comer galinha, o pescoço da bichinha, que, pelas partes rijas e compleição crocante, o tornam particularmente apetecível.

Era outra vez. Dessa outra vez, um ministro, especialista na lide com os jornalistas, essa corja oportunista, ameaça com um blackout e a publicação de informações sobre a vida privada de uma profissional - conseguidas onde e com que justificação? - que investigava o seu relacionamento com o ex-chefe do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa, um tipo porreiro.

No que toca à vez considerada em primeiro, para manter o cachaço alto e garantir a aprovação da velha, Lloyde Olsen decidiu acertar com o machado mesmo junto à cabeça do animal. O que aconteceu? Estrebuchou e esperneou. Sobreviveu porque, por tão rente golpe, ficou o tronco cerebral intacto, garantindo um coágulo a não ocorrência de uma hemorragia fatal. Nascia Mike, a galinha que não se apercebia da falta de cabeça.

Relativamente à outra vez, também o ministro esperneia e estrebucha, tentando, através do envio para a ERC de questões irrelevantes – “jornalismo interpretativo” – afastar a comunicação social e o público da verdadeira questão. O importante para este caso deixou de ser o conteúdo da peça, que nem chegou a ser publicada pelo periódico. Se recebia ou não informações, se as requeria ou não, se se serviu das sugestões do ex-espião para os quadros das secretas... Irrelevante. Houve limitação do trabalho da imprensa. Houve pressão do poder político sobre o trabalho jornalístico. E isso é inaceitável.

O que liga estas duas vezes? Mike, após 18 meses de vida, muitos dos quais de feira em feira, morreu asfixiada no seu próprio muco, num quarto de hotel, porque Lloyde se esquecera do conta-gotas com que a alimentava e removia os sucos do gasganete. Relvas, após 10 meses como ministro, muitos dos quais de feira em feira, nunca mais morre, politicamente, com o muco que lhe escorre da garganta. Pode ser que seja desta.








Imagem retirada de http://www.laboiteverte.fr. Acedido em 21/05/2012.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Finalmente, a grande revolução.


Já se esperava, era inevitável. E previsível. O povo - o povinho do Soares? - cansou-se, agastado por tudo e reclamando quase nada. E saiu à rua. Aos milhares, no fim-de-semana, apanhando o poder repressor de surpresa, organizaram-se para ocupar os pontos estratégicos do país, invadindo, inteligentemente, os últimos redutos de esperança para combater a crise. E lutaram com bravura. Munidos de cruzes, terços, marmitas e mesas portáteis – daquelas azuis, com banquinhos embutidos, que se dobram sobre si para caberem na mala. Armados de cachecóis, bandeiras e very lights azuis. Fortalecidos por Calippos de morango, imperiais e pratos de caracóis. Fizeram história.

De uma vezada só, durante cerca de 3 dias, Portugal viu o que não acontecia há quase 40 anos, uma revolução. Fátima, a praia e, com particular violência, a Avenida dos Aliados, no Porto. Ninguém pôde ficar indiferente. Ninguém pôde fingir que nada se passava. Ao mesmo tempo que os manifestantes, sem o dizerem, gritavam por dinheiro, por emprego, por comida, enfim, por dignidade, descobriram, acidentalmente, a única saída para situação em que vivem: rezar, rezar muito e com afinco, ir muitas vezes à praia para encontrar um bom partido e, no tempo livre, ver a bola com o resto da malta, para apaziguar a alma.










Imagem retirada de http://pedroturner.blogspot.pt/2011/04/25-abril-1974.html. Acedido em 14/05/2012

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Já ninguém gosta de bitoque


(1)
Que o Português é um bicho ingrato, já se sabia, mas o recente rancor face ao bitoque é que ninguém percebe. Tornou-se odioso ir ao cafezinho do Velho Diamantino pedir um pratinho robusto do clássico português que já constituía, a meio-do-dia, o povo trabalhador antes do Outro pôr a canalha de calção castanho e braço estendido a adorar a Pátria.

Uma cola, que o patrão já não deixa pedir uma minizinha para aquecer o espírito e reconfortar a alma, enquanto se espera pelo derradeiro – a malga. Montada na cozinha “imaculada” da D. Gertrudes, que já não aguenta o miúdo de colete reflector, a ASAE-ou-lá-o-que-é, a vasculhar-lhe as facas e a mandar fazer obras.

O arrozinho branco, “sequinho”, a namorar com a batata enquanto o ovo, a jeito para molhar a broa, se pavoneia em cima do bife. Tudo isto por uns euritos. Sete certinhos, que o Velho Diamantino não se atreveu a aumentar o preço da diária, apesar do aumento do IVA para 23%, para a clientela não fugir. A pouca que ainda lá vai. Agora, só os de sempre, os que já lá iam, nem que fosse apenas para dizer boa tarde.

Anda meio mundo distraído com as últimas. É normal. Mas é que enquanto o Pingo Doce mata a  Mercearia do Gomes e o Seguro cola o poster do Hollande na porta do quarto, qual adolescente apaixonada, o Velho Diamantino vai ter de entregar, já no dia 15 de Maio, um quinto de toda a receita que conseguiu este ano. E vai despedir a Anita, que até se queria casar em Junho.

- Paciência Anita, a culpa não é tua, é dos tipos em Lisboa. Sabes, já não é chique gostar de bitoque.
               

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Bazar Esotérico Mundos Ocultos


Esta loja apareceu-me à porta de casa. Bazar Esotérico Mundos Ocultos. O que (raio) é um bazar esotérico? Não sei. No meu imaginário, os praticantes de ciências do oculto são isso mesmo, ocultos. Difíceis de encontrar. Ora, segundo o site, A Luz dos Orixás, este estabelecimento tem irmãos por todo o país. Uma espécie de MacDonald’s de macumbas e tanglomanglos onde, imagino eu, há funcionários suados e descontentes a gritar manipansos para uma cozinha de enfezados a cheirar a fritos.

- “Quero um Chiken Mandinga. Natura! E uma Cola Zero.”

- “Quer ranho de amarração?”

- “Não, mas queria mais uns guardanapos.”

Não me interpretem mal. Eu adoro um bom candomblé depois do almoço e a montra promete uma grande variedade de serviços que vão desde consultas com um “Médio-vidente” até “Reiki” ou “Lançamento de búzios”. Tudo para uma religiosidade alternativa. Ou complementar, porque em tempos de crise rezam-se a todos os santos e, verdade seja dita, já ninguém aguenta ficar com a Santa Hóstia colada no céu-da-boca enquanto se tenta balbuciar um Pai Nosso.

Mudando de encantamentos para sortilégios a sério, muito se tem falado sobre a greve dos jogadores do União de Leiria - até a Académica vai entrar de luto no próximo jogo com o Sporting. Imagino que “o luto pela morte da verdade desportiva” seria levado a cabo mesmo se não tivesse sido o Feirense a ganhar aos mal pagos e a fugir dos lugares de descida de divisão.

São exemplos como este que mostram verdadeira realidade de um país. É banal o encerramento, por dia, de dezenas de PME, mas parece ser incompreensível e, até mesmo, chocante quando a falta de dinheiro atinge um clube de futebol. Sacrilégio!

terça-feira, 24 de abril de 2012

Gotículas parvas. Irritantes.


7:55. Corre um vento frio. Não gelado, nem cortante. Nem muito forte. Simplesmente desconfortável. Sibilante. Irritante. Que arrasta gotículas minúsculas e pretensiosas. Minúsculas e pretensiosas gotinhas que ignoram o chapéu-de-chuva. Idiotas. Incomodativas. Quase tão incomodativas como a cara das pessoas de manhã - inexpressivas. Nem tristes, nem desanimadas. Ausentes, distantes e amorfas. Resignadas com as pingas, mesmo aquelas que, por magia pagã, acertam, certeiras, entre as carnes e as vestes e deambulam vitoriosas, gelando a espinha até à alma e os ancestrais até aos tetravós.

A resignação, enquanto tiver a duração do percurso de casa ao trabalho e desde que com o tempo, é saudável. O grave é quando, para além de ser epidémica, atinge o indivíduo de forma fatal, permanente. Como é que, na mesma semana, ao mesmo tempo que nos contentamos, para o Tribunal Constitucional, com a proposta de indivíduos com falta de currículo e ligações duvidosas (cujo carácter é atestado pelo protagonismo, à vista de todos, de jogadas do clássico xico-espertismo português – cumprindo à risca a lei, mas ignorando o seu intuito), permitimos que, baseado em ideias vagas e imprecisas, se apresente um plano de reforma da Segurança Social, num momento de profunda insegurança social? Apatia face à, demasiado habitual, leviandade lisboeta. Definitivamente.

Ainda bem que Quarta-feira é 25 de Abril. Centenas de pessoas descontentes no Terreiro do Paço. Espero eu, apenas resignadas com a chuva.





terça-feira, 17 de abril de 2012

MAC. Tabaco. Botelhón.


5583. Número de bebés nascidos no ano passado na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), a única que registou um aumento do número de partos entre 2010 e 2011 e onde se investiram 11 milhões de euros, desde 2004, em obras de renovação, apesar de um primeiro anúncio de encerramento em 2005. A última versão aponta para o seu desaparecimento até ao final do ano. Nada contra. A MAC, inaugurada em 31 de Maio de 1932, funciona num edifício antiquado. Com todas as condições para ser um centro de excelência, mas velho. Gasto. Não é o prédio que garante o tratamento exemplar dos pacientes. São as pessoas, mais precisamente as equipas. Que se mantenham juntas, noutra rua, noutra morada, é indiferente. O know how não está restrito aos alicerces da maternidade. E ainda bem.

O objectivo seria a transferência para o Hospital Oriental de Lisboa (conhecido como Todos-os-Santos). Ainda não foi construído. Estava previsto receber os profissionais da MAC. Estava previsto para 2014. Estava previsto ser financiado pelo Banco Europeu de Investimentos. Estava previsto. Mas não saiu do papel. Como sempre, sempre culpa da troika. Então, desarticula-se a maternidade. Mas com garantias! Garantindo que a unidade que vier a concentrar a maior parte dos médicos e enfermeiros abrirá um serviço com o nome Dr. Alfredo da Costa. Está resolvido.

Não me choca que 44% da capacidade instalada nos blocos de partos de Lisboa não seja utilizada. Choca-me é que, apesar disso, se abra o Hospital de Loures – gerido pelo BES – e se mantenham parcerias público-privadas incomportáveis, como é o caso do Hospital de Cascais.

Apesar de toda a capacidade intelectual governativa estar focada na restruturação do sistema de saúde da capital, ainda houve força para combater dois grandes flagelos. Os milhares de homicidas que fumam com criancinhas dentro do carro e os botellhóns, proibindo a venda de bebidas alcoólicas em postos de combustível – onde é, reconhecidamente, mais barato comprar seja o que for. Protecção da saúde de catraios e adolescentes de uma vezada só. Depois desta semana era isto que era preciso. Medidas populares, apoiadas pela comunicação social, sem custo para o legislador. Até parece mentira.






terça-feira, 10 de abril de 2012

Diarreia Matutina


Escola Básica de Granda. Valença. Certa professora, entretanto substituída pelo Ministério da Educação, colocava 15 alunos do 3º e 4º anos a assistir a filmes e desenhos animados, acompanhados por uma auxiliar, durante grande parte da manhã. Os meninos começaram a ficar desassossegados, não queriam ir à escola e alguns até começaram a ser seguidos por psicólogos. Não compreendo o porquê de uma criança de 8 anos recorrer a ajuda profissional por ver bonecada a manhã toda – desconfio que, quando a professora saía da sala, a auxiliar mudava para o programa do Goucha e daquela outra arara. Aquilo deprime qualquer um. Até criancinhas.

Só considero haver uma coisa pior que pôr o futuro da pátria a ver a diarreia matutina que passa por televisão neste país. É obrigar um país inteiro a ver a incapacidade que escorre de quem, se não passa a manhã a ver o caso da avó que tentou envenenar o neto ou o último desgosto de amor da Merche Romero, é porque prefere ver a Júlia. No mesmo horário, diferente canal. Falo do Seguro. O moribundo. É certo que o homem só tem tempo para tentar maquilhar os Lellos/Socristas/Socráticos/Socratistas – seja lá o nome da enfermidade - em qualquer coisa parecida com uma bancada parlamentar. Isso e, à boa moda dos programas da manhã, responder aos telespectadores. Ou a comentadores políticos. De resto, nem se uma oposição de medidas fortes fosse coisa para calhar na Árvore das Patacas, o Sonecas tinha carisma para levar ao Parlamento. A sorte é que o António Costa está aí à espreita. Pode ser que esse veja menos televisão.