Talvez. Porque são sempre certezas, até deixarem de ser. Até lhe ferverem
cáusticas e pútridas no corpo, as certezas, que tinha, que o deixaram de ser.
Talvez. Talvez tentando mais uma vez, outra vez, porque nas vezes anteriores mais
que arte e destreza, faltou-lhe fé, em si, que esbanjou ao desbarato, em
outros, que a sugaram de forma canibal e o arrastaram para o canto do bar.
Sozinho.
Finalmente, chegou. Carnal, cruel, que o fez engolir em seco todos os
planos que gatafunhara mentalmente ao namorar com a imperial meia morta. Nem o
viu, cercada por cem outros tão mais rápidos que ele. Sem interesse, os cem,
ficariam a gravitar, sem sentido, na trágica indiferença dela.
Se o visse, nada mudaria. Porventura, um aceno indolente. Tão pálido,
hipnotizante e azul como aquele que conduz mosquinhas deambulantes, ingénuas,
para uma morte eléctrica, à frente de todos, ignorada.
Doentio, o que ansiava esse olhar, que lhe desse uma razão. Uma desculpa
para se libertar de si, aspirado para ela, para o seu sorriso, para o seu
regaço.
Estava quase tão bêbado como tantos outros que ali se costumam deixar
morrer pouco a pouco. Foi até ela. Transpirado e ofegante cruzou todo aquele
antro, que ele só não odiava mais pela possibilidade de a encontrar, chegou,
olhou-a, ignorando todas as restantes que se riam com ela.
- Olá.
- Olá.
- Nunca te tinha visto aqui. Posso-te convidar para beber qualquer coisa?
- Não.
Não fossem as colunas de som debitarem milhares de decibeis de surdez,
vibrando, ondulantes, pelas carnes, ouvir-se-ia o silêncio dele, enquanto
gritava mudo de vergonha. Para que tentara outra vez? Porque o ano mudara?
Apercebeu-se, não interessa ter sido antes da meia-noite. A passagem de ano são
os últimos dez segundos do calendário. O essencial, o concreto, a luta do
dia-a-dia, mantém-se. A vida não recomeça, continua amanhã depois da ressaca.