- “Merda. Esqueci-me das bolachas. Mas agora estou no meio da fila. Mas
agora também não vou sair daqui, para voltar lá para
fundo-mesmo-ao-pé-das-batatas-fritas.
Merda. Quem me mandou vir a esta hora? Esqueci-me das bolachas, que raio
vou comer de manhã, à pressa, atrasado para as aulas, a correr para as aulas,
atrasado. Sempre, invariavelmente, a correr para aqui, ou para ali, ou para
aulas. Merda, preciso das bolachas.”
Talvez se não estivesse mesmo à minha frente, nem repararia. Entretido a
lamentar-me da minha memória de sempre, da falta dela, enquanto ele estava ali.
E é parecido comigo, o pequeno, quando eu era pequeno. Anafado. Com bochechas
cor-de-rosa fiambre. De certeza que quer ser cientista. De certeza que vai à
baliza nos jogos de bola, mesmo não querendo. De certeza que gosta de banana
com bolacha, de banana, com demasiada bolacha. De certeza que queria um
daqueles pacotes de M&Ms amarelos que se exibe pornograficamente ao pé da
máquina registadora, para compensar umas quaisquer duas horas de frases
coordenadas e subordinadas, monocórdicas aulas de português.
Estava ao pé da mãe. Que ao contrário de mim se tinha lembrado, para além
da carne, do arroz e da fruta, de levar uma caixa com uma meia dúzia de uns
quaisquer pedaços de mau caminho de manteiga. Com chocolate.
Nada o fazia esperar. Foi uma agressividade. Um nojo. Execrável, sem
piedade. Sem alma. A mãe, envergonhada, não tinha dinheiro para a caixita de
bolos. “Pode ir levantar dinheiro ali atrás, ao pé dos cacifos”, “Pois… não vou
poder, ficam as roscas”. Foi automático. Instantaneamente, os olhos encheram-se
quase até ao máximo, prontos a rebentar, mesmo no limite do suportável, ao
mesmo tempo que se agarrou a ela e num aperto de mão mudo, quase tão calado
como o choro que não existiu, quase tão silencioso como a vergonha da mãe,
foram embora os dois. Desta vez, ficou a sobremesa. Amanhã, o que ficará para
trás?
Sem comentários:
Enviar um comentário