quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Amigos do Facebook


Entre as luzes que se estalam na cara e o cegam durante demasiado tempo, ele viu-a. Mesmo de olhos fechados. Mesmo a lacrimejar compulsivamente. Desmesuradamente. Porque a mesma mortalha, ponta de cigarro, que mutila em brasa a carne incauta, seguindo-se o tal: “Desculpa, estás bem? Ah? Não ouvi. ESTÁS BEM? Sim, sim…claro.”, escarra um fumo odioso que empala os olhos bem até ao nervo. Por sorte, o mesmo povo que defeca alto fumaça, disfarça-a com o melhor perfume. Tocante a preocupação. Tocante o cheiro.

Aventurou-se até ela. Entre cotovelos, fios de cerveja que teimam fazer-se escorrer até ao mais íntimo de si, gelando o que não era suposto, e abanões, e matulões-que-não-dão-um-passo-porque-isso-é-uma-afronta-à-sua-virilidade. Não era digna de tamanha provação. Não era tão interessante como na Foto de Perfil. Talvez nem valesse a pena. Talvez noutra perspectiva. Talvez fosse da luz. Talvez porque a maquilhagem desistira após horas agarrada a marcas de unhadas e concentrados de pús. Talvez, principalmente, porque o decote ao vivo era menor.

Balbuciaram nada. Gritaram à surdez imposta pelas colunas de som. Até ela ir embora. Até ele ouvir: “Encontra-me no Face”. Encontrou. Agora são amigos. Oficialmente. Ele os restantes quatrocentos que viram o mesmo decote. Durante meses, religiosamente, gostou de cada música, comentou cada foto com agilidade e arte camonianas, “Devias ser modelo. Linda!”, desejou que ela reparasse nos “Gostos” estratégicos nas páginas da Katy Perry, numa qualquer loja de cupcakes cor-de-rosa e no Alfaiate Lisboeta.
 
Meses agarrado ao computador. Para nada. Nem se dignou a um aceno. Uma agnição da sua existência. Não o reconheceu, quando passou. Para ela, ele é apenas o tipo com a foto do Carrera amarelo. Não se conhecem. Não se falam. Mas ele sabe que ela vai ao concerto em Novembro. E sabe com quem. Enquanto ela passa distraída, ele vai sabendo de tudo.




Imagem retirada de http://www.johnhaydon.com/2009/04/facebook-groups-pages-tips/. Acedido em 22/11/2012.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Sr. Freitas teve um enfarte.


Aqui a atrasado, foi por tosse. E foi por febre. Prostração e dor no peito durante a semana anterior. Foi por doença grave e pelo mimo característico de um primogénito beirão, herdeiro de nome sem graveto, habituado a mamãs e vovós, e “coitadinho do meu menino” e “espera que já vamos ao doutor”. Por vezes, uma expectoração verde-ranho dava um ar da sua graça, pavoneando-se, toda séptica, brônquio acima, brônquio abaixo. Tinha tudo e mais o que se inventasse e fui às urgências.

Não demorou muito até ser auscultado e picado e radiografado e “é só mais um segundinho” e “desculpe, tenho mesmo de atender esta chamada”, numa dança que demorou apenas o suficiente para dois dedos de conversa com o Sr. Freitas. Mesmo entre sondas, gazes e tubos percebi que nos encontrámos ali por “um apertão rijo no peito”. Agora estava bem, desde que a Enfermeira não lhe voltasse a tentar enfiar a sonda narina acima. Nunca vira ninguém tão piúrço com um tubo metido focinho adentro.

Na verdade, não prestei muita atenção à conversa de circunstância até que o antigo empreiteiro se saiu com um desabafo. Áspero. “Isto há vinte, vinte e cinco anos, vinha dinheiro de fora, construía-se, havia sempre emprego na construção. O dinheiro não era nosso, mas metia-se nos pavilhões das juntas, nas rotundas e nas casas do povo aqui e ali.” Acrescentou: “quando estávamos mais apertados era só meter uns homens num pavimento de auto-estrada e fazia-se o mês”.

O Sr. Freitas sabe bem que foi uma economia baseada no betão que nos conduziu aqui, hoje. Sabe bem que agora não há dinheiro para construir. Não há economia. Porque também não há indústria, nem agricultura, nem pesca. Ao menos, nem tudo são más notícias. Eu já não tenho tosse, o Sr. Freitas teve alta.




Imagem retirada de http://4olhosxd.blogspot.pt/2009/01/notcia-utilizao-dos-antibiticos-no.html. Acedido em 14/11/2012.

sábado, 3 de novembro de 2012

O Nalguedo da Gabriela


Não me lembro do dia, nem tal seria essencial, tão pouco de como chegou a conversa àquele ponto. Àquele tema. A estupefação foi tanta que as minhas maneirinhas potencialidades intelectuais permitiram-se reter uma única frase. Cinco palavras. Nem o locutor, tão pouco o local. “A Juliana Paes tem celulite”. Sabido que a discussão de pêlos, borbulhas, gordura e demais pregas afins com deficitárias cromossómicas Y é um lodaçal ingrato cujo resultado nunca é favorável para o género viril, incauto, apesar de avisado, caí no erro de me juntar à desinteligência sobre o glorioso traseiro da carioca.

                De forma geral falava-se da Gabriela. A novela. Onde a substituição de uma saloia distintíssima, Sónia Braga, por uma voluptuosa morena com cara de menina veio contribuir para renovar de súbito o interesse pelo trabalho de Jorge Amado, apesar de adaptado para acirrar o mais animalesco e suado dos sentidos.

Como, infelizmente, não sigo a patranha, dediquei-me a procurar a cena alvo de análise anatómica no Youtube. Uma missão profunda e exclusivamente antropológica. Método empírico, em que, finda a devida e seríssima análise, concluí a existência da tal gordurazinha localizada. Gordurazinha boa ou má? Estética ou um nojo? Para cortar ou exibir com orgulho?

Esse parece ser o principal problema da gordura, nos dias correm. Poucos se entendem sobre: a) a sua real existência ; b) a sua correcta localização; c) métodos para cortar a que está a mais; e principalmente; d) qual está a mais.

É a questão “d” que deverá suscitar mais dúvidas. Simplificando, banhinhas repugnantes, escandalizantes, como privatizações duvidosas, por exemplo, o caso BPN que conta já com nove mil milhões enterrados em processos incertos, ao que se acrescenta as centenas de assessores, a infinidade de institutos, organismos e fundações, com as respetivas benesses, as reformas milionárias dos altos serventes públicos, entre outras, são para abater. Outras, adiposidades estruturantes e necessárias para untar o tecido social, devem ser protegidas, acarinhadas. Prestações sociais, serviços públicos como transporte, educação e saúde, rendimentos mínimos, apoio às artes e investigação. É chicha fundamental, faz falta.

Há um problema. A forma mais difícil, demorada e eficaz de cortar a adiposidade seria uma lipoaspiração radical nos institutos, organismos e fundações. Particularmente os de alçada local. Efeito secundário? O despedimento de centenas de pessoas que o Governo, numa situação frágil como a actual, não poderia suportar. Leva antes 50% de tudo o que cada um produz, corta nas pensões e subsídios. Corta na gordura estrutural. Essencial. Porque é mais fácil. Rápido. A verdadeira celulite, essa, fica cá toda.








Imagem retirada de http://blogdewilliamporto.zip.net/arch2012-06-01_2012-06-30.html. Acedido em 03/11/2012.