segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Passagem de Ano


Talvez. Porque são sempre certezas, até deixarem de ser. Até lhe ferverem cáusticas e pútridas no corpo, as certezas, que tinha, que o deixaram de ser. Talvez. Talvez tentando mais uma vez, outra vez, porque nas vezes anteriores mais que arte e destreza, faltou-lhe fé, em si, que esbanjou ao desbarato, em outros, que a sugaram de forma canibal e o arrastaram para o canto do bar. Sozinho.

Finalmente, chegou. Carnal, cruel, que o fez engolir em seco todos os planos que gatafunhara mentalmente ao namorar com a imperial meia morta. Nem o viu, cercada por cem outros tão mais rápidos que ele. Sem interesse, os cem, ficariam a gravitar, sem sentido, na trágica indiferença dela.

Se o visse, nada mudaria. Porventura, um aceno indolente. Tão pálido, hipnotizante e azul como aquele que conduz mosquinhas deambulantes, ingénuas, para uma morte eléctrica, à frente de todos, ignorada.

Doentio, o que ansiava esse olhar, que lhe desse uma razão. Uma desculpa para se libertar de si, aspirado para ela, para o seu sorriso, para o seu regaço.

Estava quase tão bêbado como tantos outros que ali se costumam deixar morrer pouco a pouco. Foi até ela. Transpirado e ofegante cruzou todo aquele antro, que ele só não odiava mais pela possibilidade de a encontrar, chegou, olhou-a, ignorando todas as restantes que se riam com ela.

- Olá.

- Olá.

- Nunca te tinha visto aqui. Posso-te convidar para beber qualquer coisa?

- Não.

Não fossem as colunas de som debitarem milhares de decibeis de surdez, vibrando, ondulantes, pelas carnes, ouvir-se-ia o silêncio dele, enquanto gritava mudo de vergonha. Para que tentara outra vez? Porque o ano mudara? Apercebeu-se, não interessa ter sido antes da meia-noite. A passagem de ano são os últimos dez segundos do calendário. O essencial, o concreto, a luta do dia-a-dia, mantém-se. A vida não recomeça, continua amanhã depois da ressaca.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Amanhã, o que ficará para trás?


- “Merda. Esqueci-me das bolachas. Mas agora estou no meio da fila. Mas agora também não vou sair daqui, para voltar lá para fundo-mesmo-ao-pé-das-batatas-fritas.  Merda. Quem me mandou vir a esta hora? Esqueci-me das bolachas, que raio vou comer de manhã, à pressa, atrasado para as aulas, a correr para as aulas, atrasado. Sempre, invariavelmente, a correr para aqui, ou para ali, ou para aulas. Merda, preciso das bolachas.”

Talvez se não estivesse mesmo à minha frente, nem repararia. Entretido a lamentar-me da minha memória de sempre, da falta dela, enquanto ele estava ali. E é parecido comigo, o pequeno, quando eu era pequeno. Anafado. Com bochechas cor-de-rosa fiambre. De certeza que quer ser cientista. De certeza que vai à baliza nos jogos de bola, mesmo não querendo. De certeza que gosta de banana com bolacha, de banana, com demasiada bolacha. De certeza que queria um daqueles pacotes de M&Ms amarelos que se exibe pornograficamente ao pé da máquina registadora, para compensar umas quaisquer duas horas de frases coordenadas e subordinadas, monocórdicas aulas de português.

Estava ao pé da mãe. Que ao contrário de mim se tinha lembrado, para além da carne, do arroz e da fruta, de levar uma caixa com uma meia dúzia de uns quaisquer pedaços de mau caminho de manteiga. Com chocolate.

Nada o fazia esperar. Foi uma agressividade. Um nojo. Execrável, sem piedade. Sem alma. A mãe, envergonhada, não tinha dinheiro para a caixita de bolos. “Pode ir levantar dinheiro ali atrás, ao pé dos cacifos”, “Pois… não vou poder, ficam as roscas”. Foi automático. Instantaneamente, os olhos encheram-se quase até ao máximo, prontos a rebentar, mesmo no limite do suportável, ao mesmo tempo que se agarrou a ela e num aperto de mão mudo, quase tão calado como o choro que não existiu, quase tão silencioso como a vergonha da mãe, foram embora os dois. Desta vez, ficou a sobremesa. Amanhã, o que ficará para trás?