domingo, 20 de janeiro de 2013

Uma Caridadezinha Nojenta


Vazio. Mais que o olhar, apagado, no branco esquálido de um quadro que devia estar a ser copiado para o caderno, caso a caneta não pesasse um absurdo, caso a cabeça não estivesse mais vazia que o olhar. O mesmo que escondeu da mãe ao correr de casa. O mesmo que a mãe não lhe mostrou porque não tinha coragem. Porque à parte do olhar, nada mais tinha para ele nessa manhã. Nada. A não ser a vergonha estampada na cara. A impotência que entorpece o corpo, que a obriga a aceitar o inaceitável. Que a leva a considerar que mais vale umas horas com fome na escola, que uns dias, passados a horas lentas, com fome em casa.

Talvez se realmente existisse, ninguém se aperceberia. A invisibilidade da última fila, que, irónica, finge esconder quem não quer ser visto, de quem vê tudo. De quem deixa passar, também por ironia, uns sussurros durante um teste. De quem não pode deixar de ouvir a agonia daquele olhar vazio lá no fundo da sala, mesmo estando de costas, ao traçar uns rabiscos tornados demasiado insignificantes, por quem não os consegue ler.

                Agora, poderá ir ao bar, todas as manhãs. Por uma caridadezinha odiosa, pérfida, de quem acha que conduzir criancinhas pela mão para uma côdea branca e um copo de leite é uma revolução no apoio social das famílias, nada comparável com as filas de esfomeados nos países de terceiro mundo, aos quais só não pertencemos, estritamente, por motivos geográficos. Essas crianças não têm irmãos com fome? E pais com fome? Famílias inteiras com fome, cujos miúdos são apenas o reflexo visível, a ponta do iceberg.

                Apoio social não é caridadezinha. É garantir empregos. É baixar impostos, para garantir empregos. É, se tal for preciso, deixar falir bancos, para investir o dinheiro onde interessa, para baixar impostos, para garantir empregos. É, simplesmente, ter consciência.



4 comentários:

  1. Gostei do texto.
    Antes não tivesse de gostar, dado a dureza do tema.:(
    Concordo com a ideia de fundo e o retrato que a transmite é eloquente.
    Quanto tempo mais deveremos aceitar esta visão do remedeio à fome da criança, para compensar o quanto se rouba aos pais e ao país, em impostos e em falta de oportunidades? Até quando esta vergonha nacional? :((
    Abraços

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    1. Tem toda a razão. Muito obrigado por visitar este nosso blog. Volte sempre!

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  2. Num tempo em que 'estado social' significa apenas mais 4 mil milhões ou menos 4 mil milhões, correcta e eficazmente desenhados num folha de excel (que é, de resto, o único instrumento de gestão que estes senhores são capazes de reconhecer), num tempo e num país onde os 'velhos' são olhados como fonte de receita (até onde poderemos ainda substrair mais as suas magras reformas?), onde os 'novos' não têm lugar (a não ser talvez no próximo voo da ryanair), onde o acesso a cuidados de saúde é cada vez mais um bem classificável na categoria de artigo de luxo (e por isso, cada vez mais moderadamente taxado), onde se pretende cortar ordenados a quem muito trabalha (ao invés de se despedir quem nada faz... e óh deus são aos mil de cada vez), onde menos 50 mil professores representam mais 710 milhões (e nunca um abaixamento na qualidade do ensino), onde o aumento das propinas representará por certo mais receita (e nunca menos alunos a aceder)... num país e num tempo como este que é cada vez mais próximo de um país e de um tempo que julgávamos ter passado definitivamente à história, qualquer caridadezinha sobranceira parece até coisa boa de se noticiar... é triste assim.
    SM

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    1. Só me resta informar que esta tua intervenção vai ser promovida de "comentário" a "post". Sem mais a acrescentar, a não ser que é sempre um prazer ter-te por aqui.

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